domingo, 7 de março de 2010

Nada provém do nada

A produção da arquitetura vista como transformação de conhecimento
“O conceito de evolução não se aplica à arquitetura porque em nossa profissão só existe metamorfose”
Alberto Sartoris
"Para saber escrever é preciso saber ler!'
Jorge Luís Borges
Nesse momento em que cresce de importância a discussão sobre os valores essenciais da arquitetura moderna, tal como a entendemos e praticamos no Brasil, é talvez oportuno discutir um assunto que diz respeito a todo aquele que, como arquiteto, ou em outras capacidades,se dedique a criar, ou qualificar, espaços nos quais atividades humanas possam ser exercidas. Esse assunto, tão importante, refere-se às maneiras pelas quais aqueles espaços, ou objetos que os qualificam, ganham suas formas.
No Brasil, a maioria dos arquitetos saídos das universidades depois da Segunda Guerra Mundial tiveram uma formação arquitetònica estruturada nos moldes do sistema estabe!ecído pela Bauhaus. Essa escola alemã, um dos vários desdobramentos que se seguiram à reação ao ecletismo e revivalismo que caracterizaram a segunda metade do século XIX em toda a Europa, tinha duas entre suas principais características que influenciaram tremendamente o ensino e a prática da arquitetura no Brasil até o passado recente, e ainda se fazem sentir com muita intensidade.
A primeira delas é o desencorajamento ao estudo da história da arquitetua; a maior evidência disso é a ausência de curiosos de história da arquitetura e de análise de precedentes no currículo da Bauhaus. No Brasil, isso se refletiu na pequena carga horária dedicada a essas duas disciplinas na universidades e na limitada cultura arquitetônca apresentada pela grande maioria dos arqutetos brasileiros atualmente; quando muito, conhece-se superficialmente os "mestres" do modernismo.
A segunda característica herdada da Bauhaus, estreitamente ligada à primeira, é a noção romântica de que o arquiteto pode e deve criar sempre obras originais, sendo condição sine qua non para isso o afastamento de quaisquer influências históricas. Esse "mito da originalidade" sugere que o arquiteto cria num vácuo histórico e cultural e, guiado por sua intuição e "genialidade", chega sempre a soluções originais, cuja for-ma deriva do programa e da estrutura.
Casa na Tunísia, Jorge Silvetti, 1977.
Casa no Lido, Veneza, Adolf Loos, 1923
Dois projetos para casas de veraneio baseados nos mesmos princípios gerais: partem de um volume cúbico que é conceitualmente "escavado", apresentando uma escada externa periférica que circunda o edifício, dando acesso aos vários níveis. Outras semelhanças: ausência de ornamentação aplicada, ênfase nas superfícies verticais, aberturas em figuras geométricas simples.
No entanto, todo arquiteto que tenha a capacidade de entender o processo através do qual ele realiza seu próprio trabalho sabe que isso não é verdade. Arquitetu¬ra é muito mais do que uma resposta original a pro-blemas programáticos e estruturais. Neste ensaio se tentará apresentar uma visão um tanto diferente do processo de criação de formas arquitetônicas. O argumento de fundo do texto que segue está resumido no título dado a este artigo, ou seja, de que a produção arquitetônica consiste, em grande parte, na transformação e adaptação do conhecimento existente à luz de circunstâncias sempre variáveis.
Todo projeto se fundamenta na premissa inicial de que existe uma atividade humana para a qual um espaço, ou, mais genericamente, um artefato, precisa ser criado a fim de possibilitar aquela atividade. Mesmo se nos concentrarmos e uma relação tão limitada quanto a que se supõe existir entre uma atividade e o artefato que possibilita o seu desempenho, iremos nos defrontar com um vasto número de formas possíveis e igualmen¬te satisfatórias, ao menos de um ponto de vista puramente quantitativo. Isso acontece porque nenhuma função pode fazer mais do que sugerir uma forma específica, não podendo nunca determiná-la. Logo, para escolher uma entre tantas possibilidades, o arquiteto necessitará ir além do propósito imediato que exige a criação de novos espaços, passando a considerar como de igual importância as outras dimensões da arquitetura, tais como a dimensão cultural, a social e a individual.
A atividade de criação exercida por arquitetos e designers, não partindo de uma tabula rasa, nem da consideração exclusiva de aspectos estruturais e programáticos, pode ser definida como uma atividade que se baseia em grande parte na interpretação e adaptação de precedentes. É claro que limitar o trabalho do arquiteto exclusivamente ao uso de precedentes seria uma simplificação grosseira da complexidade própria da arquitetura, mas, como se verá a seguir, o uso de precedentes cumpre um papel importantíssimo na área da composição arquitetônica.
Analogia é o instrumento principal usado para a interpretação e adaptação de precedentes em arquitetura. "Analogias não só existem dentro da disciplina chamada arquitetura, mas são também a essência do seu significado". Analogia é, entre outras definições, uma correspondência entre duas coisas ou situações. Outra definição útil é a que se refere à analogia como sen¬do um processo de raciocínio a partir de casos paralelos. É necessário enfatizar que uma analogia não implica identidade total, mas sim similitude entre os elementos constituintes de dois objetos ou situações que sejam comparadas. Essa similitude não se refere somente a analogias formais, mas também a propriedade, isto é, leis e princípios de formação, comuns aos dois objetos ou situações.
É através de um processo analógico que, em arquitetura, se cria o novo a partir do existente. O uso arquitetônico de analogias tem dois propósitos: o primeiro é o de empregar o conhecimento existente, na forma de edificações e objetos, como ponto de partida para a criação de novos artefatos; o segundo é o de conferir significado preciso a um edifício ou objeto através do estabelecimento de relações formais entre o novo e o existente.
Formas arquitetônicas são geradas de quatro maneiras: pelos métodos inovativo, normativo, tipológico e mimético. O ponto comum entre eles é o uso que todos fazem de analogias como instrumento básico de geração formal. Um aspecto muito importante do uso de analogias em arquitetura é que o objetivo ou situação com o qual se traça uma analogia pode ser arquitetônico ou não-arquitetônico, e a analogia traçada pode ser positiva, isto é, baseada nas similitudes exis¬tentes, ou negativa, baseada nas diferenças entre os objetos ou na inversão de uma forma ou método estabelecidos.
Tigboume Court, Surrey, Inglaterra, Edwin Lutyens, 1899: a rota principal de movimento começa fora da casa, no pátio de manobras, e progride através de pórticos e vestíbulos para, após várias trocas de direçâo, terminar nc jardim ou nas salas, cujo foco é o jardim.
Viiie Savoíe, Mssy, França, Lê Corbusier, 1928/29: a rampa que se situa no centro geométrico da planta é o elemento que possibilita um movimento ininterrupto do chão até o terraço.
Casa de banhos, Centro Comunitário, Trenton, Nova Jersey, Louis Kahn. 1954/59.
Saía de reuniões. Casa del Fascio Como Itália Giuseppe Terragni 1932/36.
Método inovativo
É o método pelo qual se tenta resolver um problema sem precedentes, ou um problema comum de maneira diferente. As origens desse método se encontram nos primeiros construtores, que, por um processo de tentativa e erro, experimentavam os materiais disponíveis até encontrarem uma maneira satisfatória de garantir proteção contra os elementos, e de dar uma forma espacial a uma determinada cultura. Uma das maneiras de ilustrar o que pode ser o méto¬do inovativo é por referência ao conceito de bricola-ge, de Claude Lévi-Strauss. O bricoleuré por ele definido através de uma comparação com o engenheiro. Enquanto este permanece dentro de um problema na busca de solução, o brícoleur sai dele, e o resultado disso é que os artefatos por ele produzidos são geral¬mente inesperados e inovativos.
Uma característica básica do método inovativo é que por ele se cria algo que não existia anteriormente, pe-lo menos no campo da arquitetura. Devido ao número enorme de artefatos arquitetônicos produzidos no mundo ao longo dos séculos, é muito difícil para um arquiteto ser original, tanto em termos da configuração total de uma edificação, como da maneira que suas partes principais são organizadas. Por essa razão, o método inovativo está ligado principalmente à criação de detalhes, ou seja, dos elementos menores que confe¬rem um caráter específico a uma edificação ou espaço urbano, tais como pórticos, transições, aberturas, colunas etc. O detalhe, visto dessa maneira e não co¬mo detalhe construtivo, é praticamente a única área em que um arquiteto ainda pode ser original.
A etimologia de um termo sempre nos possibilita definir melhor os objetos e situações a que se refere. O verbo inovar significa: tornar novo; introduzir novida¬de em. Buscando-se a raiz latina do verbo inovar, que é inovara, obtém-se um significado mais preciso, em que inovar tem o sentido de modificar. Arquitetonicamente, isso tem duas implicações: o reconhecimento da existência de um corpo de conhecimento sobre o qual essas inovações/modificações são exercidas; a criação de elementos que quebram a continuidade do precedente e se constituem numa novidade autêntica. Essas situações, embora raras, acontecem quan¬do uma solução inovadora e original é criada em res¬posta a uma nova situação que pode exigir o empre¬go de um material novo ou a criação de formas para edifícios que se destinem a abrigar atividades inteira¬mente novas. Um bom exemplo disso é o Edifício Larkin, projetado por Frank Lloyd Wright.
No sentido anteriormente referido, inovação também é sinónimo de invenção, que se entende menos como a criação de algo em um vácuo (eureca!) do que como o poder de conceber novas relações e de fazer algo que diverge, ainda que em grau reduzido, da prática e doutrina estabelecidas. Embora a possibilidade de obter uma criação verdadeiramente original não deva nunca ser descontada, o método inovativo ajudandonos a criar formas que diferem das existentes principalmente devido ao seu uso de analogias. Suas são as maneiras pelas quais isso ocorre: por meio de um cruzamento de contextos, isto é, buscando soluções fora do campo da arquitetura com analogias positivas traçadas entre os dois contextos, o arquitetônico e o não-arquitetônico; por meio de uma inversão do procedimento estabelecido para resolver um determinado problema arquitetônico (analogia negativa).
No primeiro caso, cruzamento de contextos, o método inovativo oferece três alternativas, baseada em um tipo de analogia: 1. analogias visuais: com a aparência de formas humanas e naturais; com artefatos não-arquitetônicos; 2. analogias estruturais: com a organização do corpo humano; com o funcionamento do mundo natural, como, por exemplo, sistemas naturais que se assemelham às colméias; com a organização de um programa - na arquitetura funcionalista ortodoxa, a "forma segue a função”; 3. anlogias filosóficas com princípios de outras disciplinas como foi o caso da engenharia, no início deste século, e da linguística, mais recentemente.
No segundo caso, o método inovativo, ao traçar analogias negativas, subverte maneiras estabelecidas de resolver certos problemas formais, ou toma caminhos improváveis para alcançar soluções "inéditas”. Aqui podemos nos referir a Lê Corbusier, mais aos seus projetos domésticos realizados no período entre as duas guerras mundiais, em que ele invertia o padrão de movimento comum à arquitetura tradicional. Enquanto na tradição da casas de campo inglesas e francesas o prédio atuava geralmente como um portal que dava acesso à natureza, e dentro do qual o sentido principal de movimento das pessoas era o horizontal, em uma casa como a Ville Savoie o movimento das pessoas ocorre na vertical, e em direção ao terraço-jardim, que é o destino final de onde a natureza só pode ser experimentada visualmente, ao contrário do que acontecia nas casas de campo pré-modernas onde a natureza pode ser desfrutada integralmente.
Método normativo
No método normativo, as formas arquitetônicas são criadas com o auxílio de normas estética, isto é, princípios reguladores. Embora existam muitas normas estéticas em arquitetura, há três tipos que se destacam, e sua importância para a arquitetura é confirmada pelo seu uso repetido ao longo da história.
O primeiro tipo de norma estética é o sistema de coordenadas que consiste em linhas que se cruzam, com direções e dimensões constantes. O sistema de coordenadas mais usado é aquele em que as linhas se cruzam a 90 graus, chamado de malha ou grelha, e pode ser bidimensional ou tridimensional. A malha bidimensional é basicamente aplicada à planta, como um elemento latente, um sistema de orientação sem presença física, que estabelece uma hierarquia bem clara entre espaços principais, circulação e espaços auxiliares. A malha tridimensional é assim chamada porque tem uma realidade física própria, sendo, por assim dizer, um esqueleto estrutural. Ao contrário da malha bidimensional, a malha tridimensional não se confunde com os espaços, mas coexiste com eles num estado de superposição e até, às vezes, de tensão. Esse tipo de malha não é uma invenção do século XX e pode ser encontrado até em templos egípcios do século II a.C, mas foi só neste século que se tornou um meio de expressão nas mãos de Lê Corbusier e seus seguidores, em cujos trabalhos malha e volume mantêm sua individualidade, coexistindo sem fundir-se. O segundo tipo de norma estética é composto pelos sistemas proporcionais, usados para criar um senso de ordem entre os elementos de uma composição havendo também razões filosóficas e metafísicas para seu uso. Como exemplo de sistemas proporcionais, pode-se citar a Seção Aura, as Ordens Clássicas, o Modulor, o Ken etc.
Biblioteca da academia Philips-Exeter Nova Hampshire, Louis Kahn, 1967/72: corte mostrando o espaço central que é o ponto focal da biblioteca.
Igreja Unitária, Oak Park, Illinois, EUA, Frank Lloyd Wright, 1907.
Edifício comercial Hautatalo, Helsinque, Finlãndia, Alvar Aalto, 1953/55: o pátio aqui se transforma em espaço interno, lugar de convivência dos que trabalham no edifício.
O terceiro tipo de normas estéticas consiste no uso de formas geométricas elementares como elemento de definição e controle das partes principais de uma edificação. Essas formas são a esfera, o cubo, a pirâmide, o cilindro e o paralelepípedo, além das figuras figurasgeométrica que geram esses volumes.
Normas estéticas são empregadas em arquitetura por duas rações. A primeira é o desejo de criar um senso de ordem entre as partes de uma edificação, o que pode se obtido com o estabelecimento de relações de analogias entre as partes, ou por sua subordinação a um sistema formal abrangente A segunda razão para o uso normas estéticas é o fato de conferirem ao arquiteto maior autoridade e segurança para a tomada de decisões formais e dimensionais.
Um significado específico pode ser atribuído a uma edificação composta com o auxílio de normas estéticas por associação com o significado histórico inerente ao sistema empregado; ou através das. relações entre os sistemas e sua violação dentro do próprio objeto. Uma condição necessária para que algum significado histórico seja possível é que a norma estética seja um fato de domínio da chamada memória coletiva. Isso já não é necessário para o segundo tipo de significado, que pode existir mesmo quando o objeto é observado isoladamente.
Através de uma operação metafórica, Palladio tenta conferir um caráter honorífico a uma casa de fim de semana para uma das famílias dominantes de Veneza. Colocando pórticos encimados por frontões, nas quatro fachadas, ele relaciona essa casa do séc. XVI com os templos gregos de 2000 anos antes, ou seja: um pouco de importância destes é tranferida para aquela.
Método tipológico
“Nada pode jamais renascer. Mas, por outro lado, nada desaparece completamente. E qualquer coisa que um dia existiu sempre reaparece em urna nova forma” . “...a arte de edificar nasce de um germe preexistente; nada vem do nada... o tipo é uma espécie de cerne em torno do qual, e de acordo com ele, são ordenadas todas as variações de que um objeto é suscetível”
A primeira citação se refere, em termos bem claros, ao fato que estamos sempre aproveitando o conhecimento existente para gerar novo conhecimento, isto é, novas edificações. A segunda já começa a nos esplicar como isso acontece, referindo-se a um método de projeto que se baseia em tipos. E o que é um tipo? A definição canônica, universalmente aceita, nos diz que: ”A palavra tipo representa não a imagem de uma cópia a ser copiada ou perfeitamente imitada, mas a idéia de um elemento que deva servir como regra para o modelo... O modelo, entendido em termos da execução prática da arquitetura, é um objeto que deve ser repetido como ele é; o tipo, ao contrário, é um princípio que pode reger a criação de vários objetos totalmente diferentes. No modelo, tudo é preciso e dado. No tipo tudo é vago" .
O tipo então, é algo que não pode ser mais reduzido do que já é. O tipo deve ser entendido como a estrutura interior de uma forma, ou um princípio que contém a possibilidade de variação formal infinita, e até de sua própria modificação estrutural. Para ilustrar a definição de tipo, pode-se pensar no tipo "casa-pátio", que grosso modo, seria imaginado como um volume de qualquer forma, com um vazio em seu interior, também de qualquer forma. O importante aqui é essa relação entre o volume e o vazio que ele contém, a qual pode tomar qualquer forma quando materializada.
O tipo é o princípio estrutural da arquitetura, não podendo ser confundido com uma forma passível de descrição detalhada. Todo edifício pode ser reduzido conceitualmente a um tipo, ou seja, é possível abstrair-se a composição de uma edificação até o ponto em que se vêem apenas as relações existentes entre as partes, deixando-se de lado as partes propriamente ditas.
Projetar pelo método tipológico é usar tipos como parte do processo de projetos de novos artefatos arquitetônicos. O uso de um determinado tipo é geralmente jus¬tificado pela existência de alguma afinidade estrutural ou, em outras palavras, uma analogia, entre um precedente e o problema que temos na prancheta.
Tipos podem ser empregados de duas maneiras, uma histórica, outra a-histórica. O propósito do uso histórico de tipos seria conferir um significado a uma forma por meio de associação conferir um significado a uma forma por meio de associação mental com um objeto/edifício já existente e conhecido. A esse respeito, Demetri Porphyrios diz: "A forma arquitetônica torna-se significativa somente quando é codificada tipologicamente, porque o tipo, com suas bases nos hábitos e convenções sociais, age como um instrumento classificatório que torna legível o mundo visível".
Nesse primeiro uso, o tipo é tanto um ponto de partida para o projeto como um instrumento de significação. Como se apoia na riqueza associativa de tipos que são socialmente legitimados, esse uso de tipos pode¬ria também ser chamado de iconográfico. O emprego do tipo casa-pátio em várias escalas através da história nos oferece exemplos claros desse modo de utili¬zar tipos em composição.
Ao ser usado a-historicamente, o tipo é, por assim dizer, absorvido no processo de composição, e o significado do objeto resultante não é aquele do tipo utilizado, mas resulta da própria operação de composição e do novo uso a que o tipo é sujeito. O uso a-histórico de tipos implica: a suspensão do tempo, já que o tipo é dissociado de sua condição histórica; a transposi¬ção de lugar - o tipo se desvincula de sua cultura original; a dissolução de escala, pois um tipo extraído de uma casa pode gerar um palácio, e vice-versa.
Uma consequência importante do emprego do método tipológico é a implicação de que as formas não são eternamente ligadas às funções as quais foram projetadas. Pelo contrário, formas arquitetônicas têm o potencial de conter, e de fato contêm, uma multiplicidade de funções através do tempo. Mas talvez o benefí-cio mais importante que se pode obter do entendimen¬to do conceito de tipo é que nos possibilita fazer uso de toda a história da arquitetura como fonte de pesquisa e inspiração, já que, ao estudar essa história des-de um ponto de vista tipológico, o que o arquiteto extrai dela são princípios, não formas literais. Projetar com o auxílio da história não leva necessariamente à criação de pastiches.
Método mimético
É o método pelo qual novos objetos e edificações são gerados com base na imitação de modelos existentes. O processo se inicia com a escolha do modelo a ser imitado. Esse modelo é uma forma familiar, testada exaustivamente e de larga aceitação. A escolha des¬se modelo implica um juízo de valor, um reconhecimen¬to de que certa obra de arquitetura é a melhor solu¬ção para determinado problema, e que, não podendo ser aperfeiçoada, deve ser imitada.
O termo mimético vem do grego mimesis, que quer dizer imitação. A teoria da imitação é um produto da Grécia clássica, ou seja, dos séculos ocorridos antes de Cristo. Desde esse tempo, quatro conceitos de imi¬tação foram desenvolvidos. Entre eles, há dois que nos interessam diretamente: o conceito platónico, segun¬do o qual imitação é uma cópia fiel da aparência das coisas (esse é o sentido hoje atribuído ao termo, na maioria dos casos); o concerto aristotélico, que não define a imitação como cópia fiel, mas como livre interpretação da essencia da realidade por parte do artista.
O método mimético imita modelos escolhidos no sentido dado ao termo por Aristóteles, ou seja, interpretando-os e adaptando-os. O fato de que modelos são transtornos no tempo e no espaço significa que há sempre diferenças entre os contextos envolvidos, e isso por si só já impossibilita a existência de cópias perfeitas. De fato o método de projeto que se baseia na imitação de modelos inclui entre suas características.
Um razoavel grau de invenção, cujo fim é adaptar o modelo as novas circunstâncias. Um exemplo muito claro disso é a arquitetura do Renascimento, que, apesar de derivar da arquitetura romana do período clássico, não pode nunca ser com esta confundida.
O metódo mimético, então, gera nova arquitetura com o auxilio de analogias visuais com a existente. Essas analofias podem ser classificadas em três grupos: revivalismo, ou revivificação estilística; ecletismo estilísticos; analogia estilística.
O revivalismo ou revivificação estilística consiste na imitação de edifícios de outro tempo ou lugar, em sua aparência geral, ou partes principais. O ecletismo estilístico consiste na imitação não de edifícios inteiros mais de partes, ou fragmentos, de edifícios existentes ou mantidos, de alguma forma, para a posteridade. As características básicas dessa variedade de mimetismo são a justaposição de fragmentos de várias procedencias e a possibilidade de se criar novos edifícios, através de permutações compositivas.
Na analogia estilística, ao contrário dos dois primeiros grupos, onde se fala da imitação de um edifício inteiro ou de várias partes tiradas de edifícios diversos, o que acontece é a escolha de um número reduzido de partes tomadas cuidadosamente de modelos escolhidos, com o fim de conferir significados precisos a novos artefatos arquitetônicos. A chave desse procedimento não é a transposição literal de um motivo de um contexto para outro, mas uma "reinvenção" do motivo, de maneira a formar uma nova linguagem, que, não obstante, ainda carrega o original como uma sombra.
Embora os quatro métodos de geração formal mais comumente usados em arquitetura tenham sido aqui discutidos separadamente, para clareza do texto, as evidências mostram que, em geral, eles aparecem em comparação durante o processo de composição em arquitetura. Nem sempre todos se empregam ao mesmo tempo, mas são raras as obras de arquitetura de alguma importância geradas exclusivamente por um desses métodos. O mais provável é que pelo menos dois ou três estejam presentes no produto final, e que se relacionam hierarquicamente: um método é usado para gerar as partes principais, e os outros para as demais.
Ao aceitar-se a ideia de que a arquitetura é uma síntese formal de vários fatores, internos e externos ao projeto, relacionados entre si em vários níveis, fica claro que nenhum sistema compositivo ou de geração formal de sintetizar todos os fatores e níveis envolvidos em um projeto. Assim, os quatro métodos de geração formal apresentados ao longo deste artigo devem ser vistos como aspectos complementares do fazer arquitetônico, nunca como sistemas independentes, ou mutuamente exclusivos. Dois exemplos serão suficientes para demonstrar isso.
Ao projetar a Primeira Igreja Unitária, em Oak Park, Frank Lloyd Wright usou o método inovativo para resolver problema do uso de um material novo, o concreto foi nesse caso deixado aparente pela primeira vez em um edifício não industrial; o método mimético aparece na repetição da mesma solução para a circulaão vertical (torres nos quatro cantos da planta), já empregada por Wright no Edifício Larkin; o uso do método tipológico é evidente na escolha de um tipo bastante usado em outros edifícios religiosos, ou seja, um volume central de pé-direito múltiplo circundado por balcões; por último, encontra-se o método normativo, na forma de uma malha bidimensional que controla a planta da igreja, definindo seus espaços principais e secundários.
Uma análise da Villa Stein, projetada por Le Corbusier, mostra que o famoso arquiteto empregou o método tipológico, ao dispor as acomodações de maneira similar as aquelas dos palacetes renascentistas, ou seja, com as áreas de estar colocadas no primeiro andar, o piano nobile. O método normativo está presente na forma cúbica da casa, e na malha estrutural tridimensional que é visível por toda ela. Lê Corbusier também fez uso do método mimético, empregando uma série de elementos usados em outros projetos seus, como escadas semicirculares, volumes curvos que definem espaços auxiliares, e paredes onduladas que modulam a circulação interna. Por fim, localizamos a utilização do método inovativo, na inversão do esquema tradicional da casa de campo, já discutido aqui em outra parte.
Para terminar, seria oportuno retornar às duas citações que abrem este ensaio. A primeira delas, do arquiteto racionalista italiano Alberto Sartoris, ilustra a intenção central deste artigo, que é a de caracterizar a arquitetura como uma práxis baseada na transformação de conhecimento. A segunda citação, ern que Borges afirma que "para saber escrever é preciso saber ler", foi dirigida à literatura, mas é também válida para todas as atividades essencialmente criativas, e expande a ideia contida na primeira citação, ao sugerir que o uso da história depende de um ato crítico, seletivo e transformador, realizado pelo arquiteto que a emprega como matéria-prima.
Apesar de os grupos vinculados à Bauhaus propaga¬rem a doutrina da originalidade, os fatos mostram uma história bem diferente. Qualquer tradição arquitetônica desenvolve seus próprios temas, seus motivos e for¬mas característicos, mas isso se dá sempre em relação com o existente. Os mais profundos arquitetos do século XX souberam usar a história da arquitetura de tal maneira, que ela se apresenta aos nossos olhos totalmente transformada. Já se disse até que a história da arquitetura muda a cada vez que um arquiteto de talento faz uso dela.
Ao contrário do que diziam os mítógrafos da arquitetura moderna, todos os grandes arquitetos deste século recorreram à história como referencial. Le Corbusier, um dos maiores arquitetos da era moderna, e um dos supostos "criadores originais", deixou-nos ampla evidência disso, em prédios como a sede do Parlamento em Chandigarh. Comparando-se sua planta com a do Museu Altes, em Berlim, projetado em 1823, por Karl Friederich Schinkel, uma relação tipológica entre as duas pode ser detectada, pois ambos apresentam a mesma sequência básica, que começa no pórtico de entrada e prossegue por um caminho processional até um espaço central coberto por um domo. Outra semelhança é a disposição de atividades secundárias na periferia dos dois edifícios.
Ainda na planta, o vasto número de colunas existentes no interior do Parlamento é reminiscente de certas salas hipóstilas encontradas nos templos egípcios. Vistas dos dois projetos mostram que o mesmo esquema, ou seja, um domo sobre um volume primário, se faz presente em ambos, embora tratado de maneira diferente. A relação entre os dois projetos se dá a nível conceituai, e em nenhuma parte isso é mais evidente do que nos pórticos existentes nas fachadas principais dos dois edifícios. Enquanto o pórtico do museu é clássico, o de Le Corbusier faz muitas coisas ao mesmo tempo: cria uma ordem quase clássica, pela disposição e proporção dos suportes verticais, mas formalmente difere totalmente da solução empregada por Schinkel; a parte superior do pórtico, que ocupa o lugar da entablatura clássica, dá sombra ao pórtico e resolve o problema do escoamento das águas pluviais (sendo aquela uma região onde chove muito durante o inverno), funcionando como uma calha gigantesca; ao criar uma área de sombra à entrada do edifício, o pórtico se apresenta como uma continuação da tradição indiana, segundo a qual os excessos do clima lo¬cal são controlados por meio de verandahs. Com esse exemplo, espero ter deixado claro que, parafraseando Borges, para escrever bem, não é suficiente ler, mas saber ler. Isso se aplica perfeitamente à pro¬dução arquitetônica. Em arquitetura é preciso saber abstrair, chegar à essência do existente e, principalmente, saber julgar sua relevância para o caso de que nos ocupamos no momento. Uma arquitetura autêntica só surge quando um arquiteto entra na história em vários níveis ao mesmo tempo, extraindo dela princípios básicos e transformando-os, ou mesmo "reinventando-os", por assim dizer, para que eles possam aju¬dá-lo a resolver problemas e necessidades do momento. Como foi visto no último exemplo, a história só é bem usada quando não restam traços literais do seu uso ou, em outras palavras, quando é "bem lida".

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